Sem prova de origem granular, PPAs e EACs não garantem Escopo 3 crível.

Por que a comprovação de origem virou prioridade

Grandes marcas já assinam contratos de energia renovável em escala, mas o próximo passo é demonstrar, por unidade industrial, que os atributos ambientais contratados de fato chegam ao consumo. Exemplos recentes mostram a intensidade dessa agenda: a Mars viabilizou 1,8 TWh/ano em energia solar para sua cadeia de valor, estimando evitar cerca de 700 ktCO₂e/ano, enquanto a Mercedes-Benz aprovou um parque eólico de 140 MW na Alemanha com contrato de longo prazo. A mensagem é clara: o mercado avançou além de anúncios; agora, reguladores e investidores cobram evidências auditáveis para evitar greenwashing e habilitar reporte confiável de Escopo 3 (Scope 3).

Firmar um PPA (Power Purchase Agreement – contrato de compra de energia de longo prazo, geralmente firmado com geradores de fontes renováveis) e adquirir EACs (Energy Attribute Certificates – certificados que comprovam a origem renovável da energia consumida, como I-REC, REC ou GO) são condições necessárias, mas não suficientes. Enquanto o PPA assegura o fornecimento e viabiliza novos projetos de geração limpa, os EACs funcionam como “certidões” que atestam a energia renovável adquirida. O desafio atual é rastrear e alocar esses atributos ao uso final – por planta, período e, quando relevante, até por produto ou lote – para atender às exigências regulatórias e evitar greenwashing.

Do PPA à fábrica: aplicando o “passaporte digital” à energia

O conceito de DPP (Digital Product Passport – Passaporte Digital do Produto), já em implantação na União Europeia via a ESPR (Ecodesign for Sustainable Products Regulation), pode ser aplicado ao consumo de eletricidade. Em termos práticos, trata-se de criar um dossiê digital, persistente e auditável, que consolida:

  1. Dados operacionais de consumo por medidor e por linha (SCADA – Supervisory Control and Data Acquisition – e sistemas de medição/telemetria).
  2. Contratos (PPAs, autoprodução, varejo) e respectivos volumes e prazos.
  3. Certificados EACs (I-REC, RECs, GOs), com números de série, períodos de geração e critérios de elegibilidade.
  4. Notas fiscais, faturas e eventuais garantias de origem e auditorias.

Para dar integridade ao conjunto, cada evento relevante é consolidado e tem um “carimbo do tempo” com hash ancorado em blockchain. A tecnologia não substitui auditorias, mas cria uma trilha imutável e verificável entre dados operacionais, contratos e certificados. Assim, a empresa consegue alocar atributos renováveis a períodos de consumo específicos e vinculá-los, quando fizer sentido, a produtos e lotes – útil para clientes que exigem comprovação de emissões no nível do item.

Esse alinhamento é particularmente valioso para relatórios ESG (Environmental, Social and Governance – ambiental, social e governança) em padrões como GRI (Global Reporting Initiative) e para as exigências de asseguração da CSRD (Corporate Sustainability Reporting Directive) na Europa. DPPs setoriais começam a ser mandatórios entre 2026 e 2030, elevando a régua de qualidade e rastreabilidade de dados em múltiplas cadeias.

Implicações práticas para empresas brasileiras

O Brasil já opera com EACs amplamente aceitos (como I-REC) e dispõe de uma matriz elétrica relativamente limpa. Ainda assim, a capacidade de provar, com granularidade, a correspondência entre consumo e atributos ambientais torna-se um diferencial competitivo para exportadores e fornecedores de multinacionais.

  1. Reporte crível de Scope 3: compradores globais exigem evidências alocadas por planta e período. Alocações genéricas diluem credibilidade.
  2. Contratos e compliance: contratos de longo prazo e EACs precisam de regras de alocação para evitar dupla contagem e garantir elegibilidade por mercado e por ano-base.
  3. Integração de dados: conectar medidores, ERP e repositórios de certificados reduz retrabalho e erros, além de acelerar auditorias.
  4. Preparação regulatória: DPPs sob a ESPR e a asseguração sob a CSRD tendem a se tornar referência global. Quem se adianta no Brasil atende múltiplos mercados com um único backbone de dados.

Roteiro em 8–12 semanas para uma unidade piloto

Começar pequeno e provar valor rápido é a estratégia mais eficaz. Um piloto bem desenhado pode ser executado em 8–12 semanas:

  1. Semanas 1–2 – Escopo e governança: selecionar a planta piloto, mapear pontos de medição e linhas críticas, definir produtos/lotes prioritários, responsabilidades e taxonomia de dados. Estabelecer políticas de alocação de EACs (critérios temporais e de elegibilidade).
  2. Semanas 3–4 – Integração de dados: conectar fontes operacionais (medidores, SCADA) e ERP para volumes e custos; cadastrar PPAs/contratos de fornecimento e inventariar EACs existentes com seus metadados.
  3. Semanas 5–6 – Modelagem do passaporte: definir o modelo de passaporte digital da energia: chaves de vinculação (planta/medidor/período/produto/lote), regras de alocação, e controles de qualidade de dados. Preparar documentos de suporte (faturas, certificados, inspeções).
  4. Semanas 7–8 – Trilha auditável: implementar a ancoragem criptográfica em blockchain para evidências-chave (hashes e carimbos de tempo), configurar dashboards operacionais e logs de auditoria, e executar um dry run de verificação interna.
  5. Semanas 9–10 – Relato e asseguração: gerar relatórios alinhados a GRI (consumo, intensidade, emissões evitadas, percentuais renováveis), montar dossiê para revisão por auditor independente e ajustar gaps.
  6. Semanas 11–12 – Escala e replicação: documentar o playbook, treinar equipes locais, priorizar a segunda planta e, se aplicável, ativar o vínculo a produtos/lotes para clientes estratégicos.

Resultados esperados ao final do piloto: painel com consumo e atributos renováveis por período e por medidor; repositório de contratos e EACs referenciados a eventos de consumo; trilha de auditoria ancorada em blockchain; e relatórios prontos para GRI/CSRD – tudo reaproveitável para expansão.

Importante: a ambição deve ser pragmática. Comece onde os dados já existem e a dor de comprovação é real (exportações para a UE, exigências de OEMs ou metas corporativas de neutralidade).

O movimento global mostra que quem comprova a origem da energia com precisão desbloqueia custos de capital mais baixos, reduz risco reputacional e acelera a descarbonização da cadeia. O momento de construir essa capacidade é agora.

Para empresas que buscam operacionalizar esse passaporte digital, uma abordagem possível envolve usar a solução de Passaporte Digital do Produto (DPP) da Blockforce. A ferramenta agrega dados críticos de cadeia, documentação e evidências com trilha de auditoria baseada em blockchain e validações off-chain, mantendo conformidade com a LGPD e oferecendo dashboards de relatórios ESG em tempo real. Com essa base, torna-se mais simples vincular certificados e contratos ao consumo por planta e, quando necessário, a produtos e lotes – elevando a confiabilidade do reporte de Escopo 3.